Em termos normativos, a Política e o
Direito, nesse caso vinculados ao executivo e judiciário, respectivamente, são
campos de ação distintos, delimitados pela lógica da teoria da separação dos
três poderes (os dois mais o legislativo), idealizada e sistematizada pelo
iluminista francês, Montesquieu. Porém, são também esferas interdependentes que
engrenam ciclicamente, através da lógica da interdependência dos órgãos da
soberania, o funcionamento do Estado. Todavia, apesar de muitos esforços
empreendidos para fazer valer a observação prática e rigorosa da fronteira
entre o Direito e a Política, continua muito difícil lograr esse feito, mesmo
nas democracias mais consolidadas. No caso da Guiné-Bissau, um Estado cujo
processo de democratização é tenro e imaturo, a nebulosidade é ainda maior.
O recente questionamento do
Primeiro-Ministro em relação à atuação do Ministério Público, que é uma das
entidades do sistema judiciário, é reflexo da delicada e desconfiada relação
das duas esferas. Entretanto, no meu ponto de vista, o questionamento do Primeiro-Ministro
à Procuradoria-Geral da República, no que diz respeito ao indiciamento de
vários ministros do seu Executivo, por suposto envolvimento em corrupção, foi
insinuação de que o Ministério Público teria estado a “judicializar” a política
no país. A judicializaçao da política, nesse caso, teria decorrido de
tentativas do Ministério Público tolher a governação através de acusação
seletiva dos membros da equipa governativa do Simões Pereira. Ao perceber essas
insinuações do Chefe do Governo, o Procurador-Geral da República, Hermenegildo
Pereira, reagiu apontando que a sua instituição estaria apenas a cumprir com a
responsabilidade que a Constituição lhe reserva e que a sua atuação está
blindada de ingerências políticas, as quais ele não aceitaria.
A insinuação de judicialização da
política pressuporia a ocorrência precedente de politização do judiciário –
nesse caso do Ministério Público. Ou seja, que o Ministério Público teria sido
acionado pelo Presidente da República a acossar a equipa governamental chefiada
pelo Primeiro-Ministro. Esta é a percepção que fica, mesmo não sendo proferida
verbalmente e mesmo que não tenha correspondido com a veracidade dos fatos
concretos.
Não me compete apontar quem está coberto
de razão, aliás não quero adentrar o mérito da questão. O meu propósito é
somente analisar a natureza desses atritos e crispações a partir de uma
perspectiva político-jurídica. Penso que é mais um problema de natureza
político-constitucional, enraizado na Constituição da República, que sempre pode
vir à tona em cenários de relações não muito boas entre as instituições da
República.
Contudo, naturalmente, geraria alguma
desconfiança por parte de qualquer Chefe do Governo, em um cenário de
tensionadas relações dele com o Presidente, em que o Ministério Público, cujo Procurador-Geral
de República, nomeado pelo Presidente da República, indiciasse coincidentemente
vários membros do Governo.
Longe de mim qualquer pretensão de
questionar a independência do Procurador-Geral da República e do Ministério
Público em relação ao Presidente da República, nos exercícios da sua função.
Aliás, o Ministério Público tem mesmo por dever acusar qualquer um quando
dispõe de elementos para esse efeito. Ademais, mesmo sendo o número 1 do
Ministério Público, o Procurador-Geral da República não é o responsável direto
por todos os dossiers processuais dessa instituição.
No entanto, pela difícil demarcação
prática de fronteira entre o Executivo e Judiciário, a problemática de
politização da justiça e judicialização da política se evidencia cada vez mais.
Me parece que a nossa Carta Magna colabora para o agravamento do problema.
Talvez o Primeiro-Ministro não teria desconfianças do Procurador-Geral da
República se este não era nomeado pelo Presidente da República em um sistema
político semipresencial.
Pela nossa experiência de delicada
coabitação do Chefe de Estado e o Chefe do Governo, a nomeação do Procurador-Geral
da República pelo primeiro magistrado da nação, em um sistema semipresidencial,
tende a ser um elemento potencial de geração de desconfianças e crises
institucionais. A nossa história democrática de dois decênios tem provado que
os políticos não têm se adaptado ao semipresidencialismo, tendo propiciado
inúmeras tensões, sobretudo entre o Presidente e o Primeiro-Ministro.
Historicamente, os Presidentes da
República da Guiné-Bissau não conseguiram se restringir a supervisionar,
enquanto garantes da paz e estabilidade, a atuação dos governos, sem
politizarem. Afinal de contas são políticos e têm seus círculos políticos e
dispõem de agendas políticas próprias. Aliás, o nosso sistema político lhes
atribui essa margem. Essa realidade os impõe, mesmo não “querendo”, a influir
por bem ou por mal nos governos. Isso é normal no tabuleiro político.
Entretanto, em um modelo semipresidencial, essas influências tendem a ser
problemáticas, sobretudo quando este e o Primeiro-Ministro carregam
divergências políticas.
A questão é que um sistema que outorga
ao Presidente da República poder sobre o judiciário e o mesmo semipresidencialismo,
paradoxalmente, se diz “pretender equilibrar” o poder entre o Presidente da
República e o Primeiro-Ministro, associado às tradicionais rivalidades entre as
duas figuras, tende a gerar casos de questionamentos e insinuações de
politização da justiça e judicialização da política. Repito, não estou a
afirmar que foi o que aconteceu em relação à acusação de alguns membros do
Governo pelo Ministério Público, embora seja a impressão que se pode ter.
Portanto, os questionamentos do
Primeiro-Ministro só existiram porque o modelo político é semipresidencial. Se
fosse parlamentarismo ou presidencialismo, dificilmente teria havido o
ocorrido. O semipresidencialismo pode nos propiciar o amadurecimento e convívio
democrático a partir da doutrina montesquiana de freio e contrapesos, mas pela
nossa própria experiência democrática, tende a gerar, por muito tempo, delongas
e controvérsias nas relações interinstitucionais. Por outro lado, se o
parlamentarismo e/ou presidencialismo não são bons pedagogos nos mesmos termos
que é o semipresidencialismo, os dois últimos tenderiam a ser mais eficientes e
pragmáticos na governação da nossa jovem nação.
Nota:
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