Guiné-Bissau, o político e o judiciário: as dissonâncias entre o governo e o ministério público



Por, Dr. Timóteo Saba M’bunde

Em termos normativos, a Política e o Direito, nesse caso vinculados ao executivo e judiciário, respectivamente, são campos de ação distintos, delimitados pela lógica da teoria da separação dos três poderes (os dois mais o legislativo), idealizada e sistematizada pelo iluminista francês, Montesquieu. Porém, são também esferas interdependentes que engrenam ciclicamente, através da lógica da interdependência dos órgãos da soberania, o funcionamento do Estado. Todavia, apesar de muitos esforços empreendidos para fazer valer a observação prática e rigorosa da fronteira entre o Direito e a Política, continua muito difícil lograr esse feito, mesmo nas democracias mais consolidadas. No caso da Guiné-Bissau, um Estado cujo processo de democratização é tenro e imaturo, a nebulosidade é ainda maior.

O recente questionamento do Primeiro-Ministro em relação à atuação do Ministério Público, que é uma das entidades do sistema judiciário, é reflexo da delicada e desconfiada relação das duas esferas. Entretanto, no meu ponto de vista, o questionamento do Primeiro-Ministro à Procuradoria-Geral da República, no que diz respeito ao indiciamento de vários ministros do seu Executivo, por suposto envolvimento em corrupção, foi insinuação de que o Ministério Público teria estado a “judicializar” a política no país. A judicializaçao da política, nesse caso, teria decorrido de tentativas do Ministério Público tolher a governação através de acusação seletiva dos membros da equipa governativa do Simões Pereira. Ao perceber essas insinuações do Chefe do Governo, o Procurador-Geral da República, Hermenegildo Pereira, reagiu apontando que a sua instituição estaria apenas a cumprir com a responsabilidade que a Constituição lhe reserva e que a sua atuação está blindada de ingerências políticas, as quais ele não aceitaria.

A insinuação de judicialização da política pressuporia a ocorrência precedente de politização do judiciário – nesse caso do Ministério Público. Ou seja, que o Ministério Público teria sido acionado pelo Presidente da República a acossar a equipa governamental chefiada pelo Primeiro-Ministro. Esta é a percepção que fica, mesmo não sendo proferida verbalmente e mesmo que não tenha correspondido com a veracidade dos fatos concretos.

Não me compete apontar quem está coberto de razão, aliás não quero adentrar o mérito da questão. O meu propósito é somente analisar a natureza desses atritos e crispações a partir de uma perspectiva político-jurídica. Penso que é mais um problema de natureza político-constitucional, enraizado na Constituição da República, que sempre pode vir à tona em cenários de relações não muito boas entre as instituições da República.

Contudo, naturalmente, geraria alguma desconfiança por parte de qualquer Chefe do Governo, em um cenário de tensionadas relações dele com o Presidente, em que o Ministério Público, cujo Procurador-Geral de República, nomeado pelo Presidente da República, indiciasse coincidentemente vários membros do Governo.

Longe de mim qualquer pretensão de questionar a independência do Procurador-Geral da República e do Ministério Público em relação ao Presidente da República, nos exercícios da sua função. Aliás, o Ministério Público tem mesmo por dever acusar qualquer um quando dispõe de elementos para esse efeito. Ademais, mesmo sendo o número 1 do Ministério Público, o Procurador-Geral da República não é o responsável direto por todos os dossiers processuais dessa instituição.

No entanto, pela difícil demarcação prática de fronteira entre o Executivo e Judiciário, a problemática de politização da justiça e judicialização da política se evidencia cada vez mais. Me parece que a nossa Carta Magna colabora para o agravamento do problema. Talvez o Primeiro-Ministro não teria desconfianças do Procurador-Geral da República se este não era nomeado pelo Presidente da República em um sistema político semipresencial.

Pela nossa experiência de delicada coabitação do Chefe de Estado e o Chefe do Governo, a nomeação do Procurador-Geral da República pelo primeiro magistrado da nação, em um sistema semipresidencial, tende a ser um elemento potencial de geração de desconfianças e crises institucionais. A nossa história democrática de dois decênios tem provado que os políticos não têm se adaptado ao semipresidencialismo, tendo propiciado inúmeras tensões, sobretudo entre o Presidente e o Primeiro-Ministro.

Historicamente, os Presidentes da República da Guiné-Bissau não conseguiram se restringir a supervisionar, enquanto garantes da paz e estabilidade, a atuação dos governos, sem politizarem. Afinal de contas são políticos e têm seus círculos políticos e dispõem de agendas políticas próprias. Aliás, o nosso sistema político lhes atribui essa margem. Essa realidade os impõe, mesmo não “querendo”, a influir por bem ou por mal nos governos. Isso é normal no tabuleiro político. Entretanto, em um modelo semipresidencial, essas influências tendem a ser problemáticas, sobretudo quando este e o Primeiro-Ministro carregam divergências políticas.

A questão é que um sistema que outorga ao Presidente da República poder sobre o judiciário e o mesmo semipresidencialismo, paradoxalmente, se diz “pretender equilibrar” o poder entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, associado às tradicionais rivalidades entre as duas figuras, tende a gerar casos de questionamentos e insinuações de politização da justiça e judicialização da política. Repito, não estou a afirmar que foi o que aconteceu em relação à acusação de alguns membros do Governo pelo Ministério Público, embora seja a impressão que se pode ter.

Portanto, os questionamentos do Primeiro-Ministro só existiram porque o modelo político é semipresidencial. Se fosse parlamentarismo ou presidencialismo, dificilmente teria havido o ocorrido. O semipresidencialismo pode nos propiciar o amadurecimento e convívio democrático a partir da doutrina montesquiana de freio e contrapesos, mas pela nossa própria experiência democrática, tende a gerar, por muito tempo, delongas e controvérsias nas relações interinstitucionais. Por outro lado, se o parlamentarismo e/ou presidencialismo não são bons pedagogos nos mesmos termos que é o semipresidencialismo, os dois últimos tenderiam a ser mais eficientes e pragmáticos na governação da nossa jovem nação.


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