Prof. Doutor Emílio Kafft Kosta
Entrevista ao programa PERSPECTIVAS da UNIOGBIS
A Guiné-Bissau tem um sistema semipresidencialista? Qual é a diferença entre este e outros sistemas políticos?
Kafã Kosta: O sistema de Governo instituído pela versão actual da Constituição de 1984 é semi-presidencialista. É verdade que dá importantes poderes ao Presidente da República, mas ainda é um sistema semipresidencial. Um sistema assente na existência separada dos quatro poderes: O Presidente não manda no Governo, nem no Parlamento, nem no Tribunal, nem na PGR (não estamos numa forma cesarista de Governo);
O PR é um árbitro. E, como no desporto, um grande árbitro não é aquele que joga, que toma partido por uma equipa. Deve fazer com que o jogo seja jogado pelos jogadores, dentro das regras pré-estabelecidas (a Constituição e as leis); o Governo não manda no PR, nem no Parlamento (em princípio), nem no Tribunal; o Tribunal não manda nos outros órgãos.
Há zonas de colaboração interdependente, mas cada um tem o seu quintal e manda no seu quintal. A isto se chama Democracia Representativa.
Sistema de Governo tem a ver com a forma como o poder político se organiza internamente e com o estatuto e competência dos órgãos do Estado.
Há e houve vários sistemas de Governo.
Por exemplo:
Sistema parlamentar, sistema presidencial, sistema semi-presidencial, sistema directorial, sistema orleanista, sistema representativo simples, sistema convencional.
Mas cinjamo-nos aos 3 primeiros.
Sistema Parlamentar:
Há quatro órgãos: Chefe de Estado (Rei ou Presidente); Parlamento; Governo; Tribunais.
O Chefe de Estado, ou é simbólico (tão só) – simboliza a continuidade do Estado, ou tem competências diminutas. Quatro ideias-força são corolários do sistema parlamentar:
O Governo nasce da maioria parlamentar; o Governo baseia-se na confiança política do parlamento; o Governo é responsável politicamente perante o parlamento; o Chefe de Estado não pode dissolver o parlamento [ele pode nomear ou exonerar Ministros, mas fá-lo seguindo as orientações do parlamento].
Essas 4 linhas são os traços fortes, que sofrem, porém, variações – como, por exemplo: no Parlamentarismo clássico (puro ou de assembleia) = prevalência absoluta do parlamento sobre o governo; no Parlamentarismo racionalizado (ou mitigado, ou de Gabinete) = a influência do Governo contrabalança os poderes do parlamento.
Sistema Presidencialista:
Há três órgãos: o Presidente; o parlamento; os Tribunais.
O sistema guineense é, pois, claramente semi-presidencialista. Podemos ter as nossas ideias sobre qual o mais adequado sistema, mas enquanto não mudarmos a Constituição para que ela institua outro sistema, outro regime, outra forma de Governo, todos têm a obrigação de cumprir o que a Constituição e a lei ditam. Ora, não se pode viver num sistema semi-presidencialista e actuar como se se estivesse num sistema presidencialista ou parlamentarista ou num regime monárquico.
Actuar no sistema vigente como se o modelo fosse, por exemplo, presidencialista equivaleria (caso saísse vitoriosa aquela orientação) a uma ruptura na ordem constitucional, um golpe de Estado civil institucionalizador de uma espécie de forma cesarista de Governo com que algumas almas sonham.
Mas atenção: os golpes de Estado civis, laboriosamente arquitectados e executados nos gabinetes políticos que têm dirigido na sombra o poder e o contra poder políticos, desde a instauração da democracia, são armas perigosíssimas numa democracia. E mais perigosas se tornam para a democracia, quando estivermos a falar de um país (Guiné) com uma democracia débil e uma classe política em grande parte inconsistente.
Há uma elite que já se especializou na arte dos golpes de Estado civis ou militares, nas Transições, Governos de Transições, de Unidade Nacional, etc. E vão sendo os mesmos “Conselheiros” da Desgraça de líderes, que eles vão empurrando para o abismo. E quando o desgraçado líder deu conta, já tombou do precipício... Mas os empurradores saem sempre sãos e limpos (prontos para “aconselharem” a próxima vítima). Seja como for, os líderes mal orientados não são crianças, nem inimputáveis. Eles devem carregar a responsabilidade das suas escolhas.
Se os políticos continuarem a seguir o atalho dos golpes palacianos para serem Presidentes disto e daquilo, Srs. Ministros, Directores disto e daquilo, Conselheiros, chefes disto ou daquilo, condimentados os golpes com muito xico-espertismo, intriga e politiquice, então os Donos dos Quartéis Militares poderão dizer: se os políticos acham os golpes civis perfeitamente constitucionais e legítimos, nós os militares também podemos fazer golpes militares constitucionais e legítimos... E eu sou e sempre fui, realmente, contra todos os tipos de “golpes”.
Essas manobras (que roçam a delinquência constitucional) são perigosas para a democracia, para o Estado de Direito (ainda que este se reduza a um Estado de mera legalidade). E o poder na Guiné é tão ilusório, tão volátil ! Vê-se tanta ostentação de poder, quando sabemos que o somatório hoje de todos os poderes reais de todos os chamados órgãos de soberania não ultrapassa o poder de um único quartel militar !!!
Os poderes políticos guineenses não estão a lidar bem com a sua impotência não só conjuntural, mas também estrutural. Porque, em vez de aproveitarem esta oportunidade histórica para se fortalecerem, se credibilizarem (face ao poder militar, por exemplo) e lançarem a nação para a unidade, paz e desenvolvimento, inventam guerrinhas, destroem-se e entram numa rota de implosão.
Em termos muito simples, Professor, podemos explicar o que é o Estado de direito? (e porque é importante?
KK: Estado de Direito é um conceito com muitos sentidos. E se há matéria em relação à qual o único consenso que existe é o de que não há consenso, esta é uma delas: Estado de Direito! Aparentemente, é fácil a sua definição. Basta dizermos: Estado de Direito é o Estado que se rege pelo Direito.
A parte menos consensual é responder à pergunta: que Direito? Se estivesse a falar apenas para constitucionalistas, traria para esta nossa conversa opiniões de juristas e filósofos que cruzaram séculos e continentes, do Centro ao Sul da Europa, das Américas à África... Onde descobriríamos uma divisão de campos: por um lado, os formalistas e, por outro, os substancialistas. Tudo com o fito de densificarmos o conteúdo dessa tão falada ideia ou princípio do Estado de Direito. Mas como não quero adormecer os vossos ouvintes, tentarei ser directo, claro e simples.
Estado de direito = é o Estado cuja organização e acção se conformam ao direito instituído (qualquer que seja)? Ou esse Direito em vigor tem de ter determinadas características? Ou, ainda, incluirá tal Direito normas de carácter divino ou natural...?
Qualquer que seja a opção, por mais minimalista que seja o nosso conceito de Estado de Direito, duma coisa não nos livramos: uma comunidade política, para ser Estado de Direito, deve, no mínimo, respeitar as normas jurídicas que ela mesma aprovou. Um Estado cujos órgãos se divertem a pisar as suas próprias leis, a sua própria Constituição não merece o título de Estado de Direito.
Quando alguém se candidata para Presidente da República, sabe que o sistema vigente é o semi-presidencialista, sabe que as regras do jogo são essas, fixadas pela Lei Fundamental. Deve, pois, exercer o seu mandato respeitando as tais regras que jurou respeitar no acto de empossamento, nos termos do art. 67 da Constituição: «Juro, por minha honra, defender a Constituição e as leis (...) cumprindo com total fidelidade os deveresda alta função para que fui eleito».
Como é que o Estado está organizado na Guiné-Bissau?
KK: A organização do Estado guineense baseia-se no seguinte quadro: Poder presidencial; Poder legislativo (ANP); Poder executivo que tb desempenha a função legislativa e administrativa (Governo); Poder Judicial. Estes quatro poderes estão separados uns dos outros, embora haja, a título excepcional, alguns espaços de interdependência entre eles[...]
Isso é que se chama princípio da SEPARAÇÃO DE PODERES. Que não se confunda: O princípio, a raiz, a regra é a separação de poderes; a interdependência é uma dimensão complementar da separação. Portanto, não se pode subverter a ordem de preferência e, com a desculpa da interdependência, invadir espaços de outros poderes. Isto é usurpação de poderes e um insuportável atentado ao geralmente chamado Estado de Direito.
A Guiné-Bissau é um Estado unitário, formalmente centralizado. Formalmente, sem qualquer descentralização administrativa. Curiosamente, o poder local autárquico que existe manifesta-se não como uma descentralização DO Estado, mas como reconhecimento da impotência do Estado nascido nos anos 70, perante uma realidade multi-secular: as tribos e os seus reinos e domínios. São os únicos poderes locais autárquicos, à data.