O ex-embaixador da Guiné-Bissau na então União Soviética, Augusto Pereira da
Graça, o “Neco”, participou da mobilização de cidadãos para a guerrilha
no Leste da Guiné.
Nos anos 1960, “Neco” foi vítima da espionagem colonial durante a
mobilização. Ficou sete anos no chamado “campo de concentração do Tarrafal”,
onde foi torturado na “Holandinha”. Saiu da prisão quando o general português
António de Spínola instalou a “Política por uma Guiné melhor” e reintegrou à
guerrilha na frente Norte.
“Neco” recebeu a reportagem da DW África no condomínio construído aos ex-combatentes
na capital guineense. Ele mora em um dos 130 apartamentos construídos durante a
administração do ex-Presidente Kumba Ialá.
DW África: Pode lembrar os seus dias no Tarrafal?
Augusto Pereira Graça (APG): Foram amargos. Foram dias dolorosos porque lá
as refeições oferecidas continham arroz e óleo de palma podres. O óleo de palma
não servia nem para fazer sabão. Para lavar a roupa e tomar banho, tínhamos
direito a dez litros de água. O comportamento disciplinar era muito rigoroso.
Bastava uma falha nas correspondências com os carcereiros que eram brutalmente
castigados. Havia celas normais e uma outra “disciplinar”. As pessoas iam para
lá para ficar uma semana a pão e água – consumido de dois em dois dias. Havia
uma outra cela ainda mais perigosa, chamada “Holandinha” ou “Frigideira”. Os
prisioneiros iam para lá para saírem mortos. Cá fora, quando era três horas da
tarde, já era noite naquele cubo. Não havia torturas físicas, mas psicológicas
para ver se reduziam a nossa resistência e determinação em continuar a luta
pela nossa liberdade definitiva.
"Holandinha": prisioneiro ficava em pequeno recinto para punição
especial
DW África: O senhor foi para a “Holandinha”?
APG: A “Holandinha” servia para o castigo mais severo. Eu fui parar lá como
acusado de liderar um protesto dentro da prisão contra o alimento que nos
forneciam, que não dava para nada. Não poderíamos mesmo saborear este alimento.
Então o diretor entendeu que eu estava a criar uma subversão dentro do campo.
Saiu um despacho que me dava um castigo de 15 horas nesta “Holandinha”. Eu não sei
dizer qual é a temperatura dentro deste cubo, mas o indivíduo entra para lá e,
depois de cinco minutos, parecia que lhe tinham dado um banho. Era um calor
insuportável. Pode-se dizer um “calor infernal”. Passei 15 horas ali, mas
parecia que tinham sido 15 anos.
DW África: Quando o senhor foi preso havia sinais de que o senhor estava
combatendo?
APG: Nesta altura, ainda não havia armas. Usávamos apenas pistolas que eram
distribuídas aos militantes clandestinos. Quer dizer, as pessoas que eram
indicadas como responsáveis recebiam uma pistola para defesa. Quando me
aprisionaram, não me encontraram com nada. Chegava de uma reunião a 40
quilómetros de Gabu. Era uma reunião política, de mobilização para a adesão à
luta de libertação. Era necessário despertar primeiro a consciência patriótica
para as pessoas aderirem à luta. Queríamos que a nossa luta fosse política, que
a nossa independência fosse dada pacificamente. Depois, concluiu-se, no
entanto, que isto não seria possível. Salazar dizia que a Guiné era a “filha
primogénita” de Portugal, que tinha sido conquistada com sangue.
Ouça a entrevista a
Augusto Pereira da Graça
DW África: Como era abordagem das pessoas nas tabancas?
APG: Primeiro, procurava-se saber quem eram as pessoas influentes na tabanca.
Explicávamos a estas pessoas os castigos e trabalhos forçados aos quais a
população estava sendo submetida. Era quase como se vivêssemos em uma situação
de escravatura e chegava a hora de nos libertarmos destes trabalhos forçados.
Nesta conversa conseguia-se a aderência à luta política. Mas neste período não
se sabia quem era da PIDE e quem não era. Então, falava-se com quem quer que
fosse e muitas vezes falávamos com um indivíduo que pertencia à PIDE.
Mas, nesta altura, como a PIDE não tinha autorização de lançar uma ofensiva
prisional, eles tomavam o nome das pessoas que iam para as tabancas fazer a
mobilização. Assim, na madrugada de 13 de março de 1962, a tropa colonial
portuguesa lançou uma operação militar que resultou na prisão do presidente do
partido Rafael Barbosa. Foi uma prisão em massa que acabou resultando na nossa
prisão também no dia 17.
O Campo do Tarrafal foi reactivado em 1961 para receber prisioneiros das
ex-colónias portuguesas
DW África: O senhor vive hoje em um condomínio para ex-combatentes em
Bissau.
APG: O condomínio é um monumento de reconhecimento dos nossos sacrifícios.
O governo entendeu que deveria começar a ter uma atitude de reconhecimento aos
combatentes. Mandaram construir estes prédios, mas o número dos combatentes
instalados aqui é muito inferior ao de combatentes que não estão aqui
instalados. Muito embora o governo defendesse que as construções continuariam
até que todos os combatentes fossem todos dignamente instalados.
DW África: Então, este condomínio é uma vitória.
APG: Em parte. Seria uma vitória
completa se todos os combatentes estivessem dignamente instalados. Nem todos
estão instalados devido às dificuldades que os sucessivos governos enfrentavam.
Somos milhares de combatentes da pátria. Instalar todos de uma vez é muito
difícil. Isto tem que ser feito paulatinamente. Conforme a disponibilidade
financeira do governo, vai-se satisfazendo às necessidades dos combatentes. Não
há apartamentos para todos. Fez-se uma espécie de sorteio para acomodar as
famílias que estão aqui e os outros aguardam a sua vez.