Foi um dos maiores desafios que Fátima Proença já enfrentou: unir um
conjunto de organizações, a maior parte das quais guineenses, e com elas
persuadir o Governo da Guiné-Bissau a fechar a mais antiga esquadra da
capital, que foi uma prisão, que era um “símbolo de opressão, de
violência política”, e a cedê-la para que fosse transformada num espaço
de cultura de direitos humanos.
O lugar, na parte velha de Bissau, desmonta, por si só, ideia feitas
sobre a Guiné-Bissau — “um país que não funciona, sem instituições, à
espera da ajuda internacional”. “Foi ali que encontrámos interlocutores,
pessoas que querem lutar pela liberdade, pela justiça social e que se
organizaram para isso”, diz.
A União Europeia nem sequer concedia
financiamento para projectos de direitos humanos no país. O consórcio
liderado pela Associação para a Cooperação entre os Povos (ACEP) e a
Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) obteve financiamento da
Cooperação Portuguesa e abriu a Casa dos Direitos no início de 2012.
Volvidos dois meses, houve um golpe de Estado. “Os dirigentes da Liga
estavam lá dentro, o quartel-general estava mesmo em frente, os
militares perseguiam pessoas na rua, mas ninguém foi lá procurá-los”,
recorda. “A Casa dos Direitos já é.”
Não tinha uma relação
próxima com a África imaginada, como era comum no Portugal da década de
1970. “Não tinha necessidade de defender uma África que tinha que ver
com Portugal.” Contava 18 anos quando começou a colaborar com o Boletim
Anti-Colonial. A sua primeira tarefa foi dactilografar um relatório
sobre o massacre de Wiriyamu (Moçambique, 16 de Dezembro de 1972).
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(Fátima Proença, Directora executiva ACEP, 61 anos) |
Entrou no sector da ajuda ao desenvolvimento por via do Centro de
Informação e Documentação Amílcar Cabral, actual Centro de Intervenção
para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC), associação nascida logo
em Maio de 1974, na sequência da luta pela libertação. Começou como
voluntária.
“Foi um processo natural”, diz Fátima Proença. Não
teve, como tantos outros, de fazer um corte violento com a família, com a
profissão ou com o país. “O que sou hoje tenho sorte de ter começado a
ser em pequena, quando a minha mãe me contava histórias sobre um mundo
longínquo.”
Aterrou pela primeira vez em África em 1983. Ia
passar dois meses em Bissau a dar formação sobre documentação a técnicos
das Forças Armadas e dos vários ministérios. “Foi um dos maiores
processos de crescimento que vivi”, conta. Esforçou-se para “entender um
país, uma cultura, que só conhecia em teoria, à distância”. E percebeu
que iria ficar ligada a África para sempre.
Regressou mais
depressa do que pensava. Regressou volvidos dois anos, com o marido,
para passar um ano inteiro a trabalhar como cooperante do Estado
português. “Trabalhei num projecto novo, o início do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau, com pessoas fora de série, que me
ajudaram a perceber quais eram os meus limites, do que era ou não
capaz.”
Era grande a tensão na Guiné-Bissau em 1985-1986. Houve
uma tentativa de golpe de Estado que culminou com detenções, torturas,
fuzilamentos. Tentando sentir a espessura das coisas, Fátima Proença
enquadrava tudo no processo de transição da luta armada pela
independência para a construção de um estado civil. “Há ali uma
legitimidade ao nível das armas que é difícil de transformar…”
Há
30 anos, o sector estava a despontar em Portugal. A Plataforma
Portuguesa das Organizações Não-Governamentais de Desenvolvimento foi
formada por 13 entidades com mais desejo do que experiência de acção
humanitária e cooperação para o desenvolvimento. Coordenava-a Eugénio
Anacoreta Correia.
Fátima Proença pediu reforma antecipada ao Ministério do Comércio, onde
começara a trabalhar ainda estudante de Economia, e dedicou-se a tempo
inteiro ao CIDAC. Só de lá saiu em 1996, a caminho da ACEP, que fora
criada para trabalhar na integração dos imigrantes africanos em Portugal
e ambicionava passar a actuar nos seus países de origem.
Era
mais uma etapa do mesmo caminho. Ia ajudar a construir sociedades mais
democráticas, mais abertas aos “outros”, nos países de língua oficial
portuguesa. Ia fazê-lo numa lógica de “educação para a igualdade”, não
de “tolerância paternalista”. Partia do princípio de que todos podiam
ajudar a “fazer mudança”. E ainda parte. “Não queremos falsos êxitos
alimentados por pessoas que estão de passagem, que têm de fazer as
coisas a correr”, explica. “As pessoas que estão lá têm de ter as
rédeas, têm de dominar os processos, têm de estabelecer connosco uma
relação de poder dizer ‘não’.”
Através dos seus projectos de
comunicação, que amiúde envolvem jornalistas e artistas, a ACEP tenta
fortalecer laços entre ONG, sensibilizar opiniões públicas, desmontar
visões simplistas. “Não temos uma pressa desalmada de mostrar
resultados, até porque muitas vezes os nossos resultados são invisíveis.
Têm que ver com o que está na cabeça das pessoas, com capacidade de
arriscar, de trabalhar em conjunto. E isso leva tempo. Temos de
conquistar esse tempo. Com tempo, podemos cozer um elefante numa
panela.”
Pode ser estafante. Há uma “pesada carga burocrática e
administrativa” relacionada com obtenção de financiamento, sobretudo,
junto da União Europeia, mas também nas instâncias nacionais. E isso,
diz, “exige um profissionalismo que desvia do que deve ser o centro da
actividade”.
Talvez fosse mais fácil se trabalhassem em áreas
mais palpáveis como a vacinação ou a distribuição de comida. Nunca foram
por aí. “Somos uma associação de gente que trabalha com associações de
gente que tem o mesmo tipo de preocupação que nós. Somos cidadãos a
tempo inteiro, digamos assim. Procuramos tornar algumas utopias
possíveis.”