O ataque à Sede de Charlie Hebdo, semanário satírico francês, por dois terroristas, ceifou a vida a 14 pessoas, incluindo dois polícias, terminando com a morte dos próprios atacantes na sequência do tiroteio com a polícia. Quase em simultâneo e na mesma capital, um casal terrorista sequestrou doze pessoas num minimercado judeu, tendo saldado no assassinato de 4 pessoas pelo sequestrador e deste pela polícia. A companheira do sequestrador ainda está em fuga em parte incerta. O ataque foi reclamado pelo braço de Alqaeda no Yemen, que diz ter sido uma vingança sua contra o semanário e seus jornalistas pelas ofensas dos seus cartoons ao Profeta Mohamed.
O ataque e o sequestro, sobretudo o primeiro, geraram a onda de choque e de solidariedade em todo o mundo. Vigílias e marchas foram organizadas por gente de diversa proveniência, crença religiosa ou convicção filosófica, inclusive por aqueles que não concordam com a linha editorial daquele semanário satírico. A manifestação do dia 11 deste mês juntou cerca de 40 Chefes de Estado e de Governo e 4 milhões de pessoas em Paris. O Reino de Marrocos condenou o ataque e solidarizou-se com a França e os familiares das vítimas, mas não se dispôs a participar na manifestação de Paris por não querer se associar a manifestantes que empunham cartoons satíricos sobre o Profeta Mohamed. De facto, é ignóbil não condenar o ataque e o sequestro com toda a veemência possível.
Entretanto, apesar do choque, líderes mundiais tiveram a serenidade de apelar ao bom senso de separar o ataque terrorista, responsabilidade exclusiva dos seus autores e apoiantes, de uma religião de paz praticada por esmagadora maioria de crentes que não se revêm no terrorismo e no radicalismo religioso.
Jornais e revistas de maior circulação da generalidade da imprensa ocidental publicaram cartoons de Charlie Hebdo como sinal de solidariedade e de demonstração da firmeza do princípio da liberdade de expressão perante a tentativa de intimidação. Entretanto, outras publicações ocidentais igualmente de prestígio nacional ou global, apesar de terem veementemente condenado o ataque e o sequestro, não acompanharam as suas congéneres na publicação de cartoons de Charlie Hebdo. São nomeadamente: New York Times (EUA), New York Daily News (EUA), Telegraph (Inglaterra), Jyllands-Posten, que havia publicado cartoons de Mohamed no passado (Dinamarca). A Associeted Press e a Reuteurs, duas maiores agências noticiosas do mundo, também não publicaram os cartoons.
Aquelas publicações e agências não aceitaram publicar cartoons do semanário satírico por considerarem que não se tratam de simples sátira mas de insulto. Essa recusa e o impacto do ataque, já fizeram reacender, ainda que timidamente, o debate sobre os limites da liberdade de expressão, sobretudo quando é feita por via da imprensa, que tem maior capacidade de provocar danos. Com estas linhas, condenando embora o ataque (repetimos), queremos nos associar a esse debate.
Em democracia e num Estado de direito, é impensável que as pessoas não possam exprimir o seu pensamento de forma livre. Mas é igualmente impensável que essa liberdade não tenha limites. A ideia do que deve ser o limite varia ao longo do tempo e em função das circunstâncias e necessidades de momento. O conteúdo da liberdade de expressão não é igual em todos os países e épocas, inclusive no próprio ocidente ou em países que adotaram a democracia liberal. Em alguns deles, por exemplo, o antissemitismo é equiparado a racismo, portanto, criminalizado; a simples negação do holocausto é também considerada crime. Essas incriminações surgem como limites à liberdade de expressão. Na generalidade de países, o insulto ao Presidente da República ou Chefe de Estado é um crime com punição agravada.
A racionalidade subjacente à criminalização de certos comportamentos como limite à liberdade de expressão, leva-nos a indagar se a criminalização da satirização ou insulto a Profetas maiores de qualquer que seja religião não deveria ser um limite à liberdade de expressão? Dir-me-ão que isso seria vergar perante uma pressão ilegítima de terroristas e que estes nunca estariam satisfeitos com qualquer tipo de recuo. A verdade é que não se trataria de satisfazer a vontade de terroristas. As leis fazem-se para mudar o que está mal numa sociedade. Se a liberdade de expressão estiver a ameaçar a convivência pacífica, deve ser limitada, sem que isso signifique cobardia ou cedência a pressão ilegítima de terroristas. Mesmo um crente não radical, sente-se tocado, senão mesmo ofendido, quando o seu Profeta maior estiver a ser objeto de sátira ou de insulto. O mesmo acontece quando o nosso Presidente da República ou Rei é objeto de sátira ou insulto. Portanto, o uso da razão não deve ser posto de lado só pelo simples facto de o acto que nos desperta a consciência para o problema ser vil e injustificável.
Não existem dúvidas de que somos todos Charlie Hebdo no que toca à defesa do princípio da liberdade de expressão e somos todos contra a acção violenta de terroristas. Mas não devemos ser todos Charlie Hebdo na extensão do princípio da liberdade de expressão.
Uma convivência pacífica entre pessoas de diferente proveniência, crença religiosa ou convicção filosófica deve fazer-se com respeito por aquilo que cada um razoavelmente considera de mais sagrado. E a religião é das coisas mais íntimas e sagradas que cada crente tem. Proibir a satirização ou insulto de Profetas maiores de uma crença religiosa, como Jesus para os cristãos ou Mohamed para os muçulmanos, não entraria no âmbito de cerceamento ilegítimo ou infundado da liberdade de expressão.
A Guiné-Bissau é felizmente caraterizada por uma convivência pacífica entre os crentes de diferentes religiões. Certamente que essa convivência seria quebrada se, de repente, se puséssemos a satirizar ou vilipendiar Profetas maiores de cada religião. A contenção ou moderação no exercício da liberdade de expressão é um importante instrumento de regulação e de pacificação das sociedades.
Em tempos, quando um convertido a religião muçulmana no sector de Biombo incendiou um irã da comunidade (que não é sua propriedade), isso gerou uma reacção colectiva forte contra ele, a confundir-se com uma ira contra a presença da religião muçulmana naquela localidade. O mesmo aconteceu quando se tentou construir uma mesquita em zona considerada sagrada por felupes em Suzana ou recentemente em Alto Crim em relação aos papeis de Bissau. Outra reacção não era de esperar.
Em tempos, quando um convertido a religião muçulmana no sector de Biombo incendiou um irã da comunidade (que não é sua propriedade), isso gerou uma reacção colectiva forte contra ele, a confundir-se com uma ira contra a presença da religião muçulmana naquela localidade. O mesmo aconteceu quando se tentou construir uma mesquita em zona considerada sagrada por felupes em Suzana ou recentemente em Alto Crim em relação aos papeis de Bissau. Outra reacção não era de esperar.
Quando se ultrapassa o limite de razoabilidade, arrisca-se a ser respondido da pior forma, como foi o caso de Charlie Hebdo. O bom senso para o qual apelaram os líderes mundiais, deve conduzir-nos a uma reflexão aprofundada sobre o assunto e a tomada de decisões corajosas. A final, a protecção da pessoa e da imagem de um Presidente da República ou de um Rei não é mais importante que a protecção e salvaguarda da pessoa do Profeta maior de qualquer que seja a religião. Deus nos abençoe com o bom senso!
Por: Pedro Rosa Có
Por: Pedro Rosa Có
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