A justiça é e sempre foi a menina desejada de qualquer poder político e em qualquer parte do mundo.
Fala-se tanto da separação de poderes e da independência da justiça, mas sempre que o poder político pode e consegue, corrompe ou tenta corromper a justiça.
“A separação de poderes deve ser em grau tal, que qualquer dos ramos pode operar sem restrições excessivas dos outros, mas a interdependência entre eles também devem estar em grau tal, que um único ramo não possa excluir os outros em suas decisões”. (Montesquieu 1750)
Numa sociedade democrática, uma das técnicas usada pelo poder político para o controlo do poder judicial, é criar através de decretos e decreto-leis, carências e dependências tais, aos atores judiciais, de forma que qualquer melhoria das condições dos funcionários judiciais (habitualmente “migalhas”), tenha de passar pela aprovação do poder político.
É óbvio que existem outras técnicas, como por exemplo a corrupção ativa ou até passiva dos atores judiciais.
A independência dos atores judiciais constitui também um pilar importante na construção de um estado democrático e, por muito independente que seja a justiça de um país, é sempre necessário uma vigilância permanente por parte dos atores políticos e da sociedade civil, já que a usurpação dessa independência é algo sempre apetecível, principalmente pelos atores políticos e/ou interesses económicos.
Recordemos a recente expulsão de juízes portugueses do território timorense, por se considerar que, apesar de pagos para defenderem os interesses do estado timorense, esses juízes moviam-se em prejuízo do mesmo…
Ora, se o Ministério Público, por definição “, é o órgão do Estado encarregado de representar judicialmente o próprio Estado e defender a legalidade democrática e os interesses postos por lei a seu cargo”, deve claramente ser um órgão que goza de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central e autárquicos.
Na Guiné-Bissau, num ano de restabelecimento do estado de direito democrático, estamos a assistir um fenómeno um tanto ou quanto sui generis, em que pende sobre dois terços dos governantes do país alguma acusação por parte do Ministério Público. E, mais sui generis se torna, quando o próprio governo vem insinuar que a justiça está a perseguir os seus elementos, quando o próprio governo, eleito pelo povo para a gestão da coisa pública, devia colocar-se ao lado da justiça para a defesa da coisa pública! Coisas nossas!
Através do Conselho de Ministros, o governo reclamou da vaga de detenções dos membros do governo e requereu um debate de urgência na ANP, sobre o estado da justiça no país. Ainda foi mais longe, querendo que o debate incidisse sobre a atuação do Ministério Público!
Não digo que o governo não esteja a defender os interesses do estado, se julga que interesses alheios ao estado estejam a produzir falsas acusações aos membros do governo, o que poderá vir a resultar em atribuições de chorudas indemnizações a esses acusados, caso a matéria de acusação não seja fundamentada nem provada pela justiça.
Mas, o que o governo não pode, nem deve, é acusar a justiça de perseguição aos membros do governo, apenas por serem os principais visados pela justiça, não investigando nem perseguindo outros elementos representantes dos órgãos de soberania que também são ou foram prevaricadores. Assumindo essa atitude, o que o governo transmite é a imagem que ele até se assume corrupto, mas há também outros corruptos que devem ser investigados primeiros, antes de chegar a eles!
Ora, do que o governo se esquece, é que o povo não votou neles para serem corruptos, nem para nomearem corruptos para funções de gestão da coisa pública, nem tão pouco protegê-los na continuação do exercício das suas funções. O facto de existirem outros corruptos como eles, não lhes dá o direito de continuarem a ser governantes corruptos.
O governo está ferido (não sei se de morte ou não!), por parte da justiça, que se defende alicerçando-se no estrito cumprimento da função que lhe cabe, como agente protector dos bens do estado. E o governo gravemente amputado na sua honra, tenta sobreviver, primeiro prometendo remodelações, para a seguir, sem remodelar nada, atacar sem armas eficazes a justiça e de seguida remeter-se ao silêncio, procurando soluções e tratamentos às graves feridas abertas pelo golpe da justiça!
Há um ditado chinês que diz o seguinte: “Não queres que se saiba, não o faças”. Se o fizeram, soube-se, têm de pagar por isso. É essa a essência de um estado de direito democrático.
A sociedade civil, visivelmente mal informada, reage de forma mais disparatada possível, através da fraca imprensa e da blogosfera, conforme os interesses e conveniências de cada facção.
Essa reacção, por vezes exagerada, é também culpa do poder político e judicial, que não realizam rondas de informação e esclarecimentos, através de conferências de imprensa, com a intenção de esclarecer a população, sem no entanto violar os segredos da justiça. Esses agentes do estado preferem deixar passar a imagem de estarem a encetar guerrinhas silenciosas de bastidores e de interesses corporativistas, enquanto os agentes de informação e “escribas” semianalfabetos vão se degladiando para o acesso às fugas da informação, para serem depois exibidos, como se de grande trabalho de investigação se tratasse!
Por parte dos mais acérrimos defensores do governo em funções, assistimos a insinuações de que o Ministério Público poderá estar a ser manipulado por interesses obscuros, inclusive pela própria Presidência da República, no sentido do derrube do governo e, por outro lado, assistimos aos defensores emocionais da Presidência da República a rotular todo o governo de corruptos e sem condições para prosseguirem a sua legislatura.
Chegou-se ao cúmulo de ameaças de exposição na praça pública dos ordenados, das condições de vida e das atividades individuais e familiares dos juízes e magistrados do Ministério Público! Ao que chegamos! Coisas nossas!
O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público reagiu inicialmente em defesa dos juízes, de forma serena e até tímida (atendendo a gravidade da insinuação do governo), informando que os juízes não vão tolerar interferências no exercício das funções dos Magistrados.
A justiça, no entanto, passou ao ataque, com o Ministério Público a acusar o governo e o partido que o sustenta, de tentarem manipular a justiça, motivados pela vontade incontrolável de manipular os “media” e a opinião pública.
Como a justiça ganhou a posse da bola, saiu da defesa para o ataque, com a incursão do seu ponta-de-lança, o Procurador-Geral da República, a área contrária (a ANP), para, numa perigosa jogada de ataque, pedir o levantamento da imunidade parlamentar a alguns deputados que estão a ser investigados.
Um tendencioso fiscal de linha, companheiro de outras lutas do partido que sustenta o governo guineense, situado numas ilhas atlânticas, portanto mal posicionado em relação ao decorrer dos lances do jogo no terreno guineense, ainda tentou frenar o rápido contra-ataque da justiça guineense, levantando e acenando a bandeirinha da paz e do bom funcionamento do estado, mas o árbitro assobiou para o lado e deixou seguir o jogo, porque poderia claramente beneficiar o infractor.
Na sequência do muito positivo estreitar dos laços acabado de ser promovido pelos dois governos da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde, o PAIGC travestido com CV sentiu-se imediatamente com autoridade e legitimidade, para mandar recados à sociedade civil e aos órgãos de soberania guineense, a partir de Cabo-Verde! Num comunicado que roça a uma “tragicomédia”, o PAIGC travestido com CV consegue identificar a existência na Guiné-Bissau de um “clube de tchuchiduris”, organizado para desorganizar o país!
Posso até concordar com os libertadores dos “dez grãozinhos de terra semeados no atlântico” (conforme cantou Cesária Évora), com a existência de anarquistas no seio dos partidos guineenses, que só sobrevivem no anarquismo, porque é a única forma de conseguirem aceder à mama do estado! Mas, isso sou eu a julgar pela minha cabeça, sem a responsabilidade político-institucional dos libertadores travestidos de CV (Começa a haver C’s há mais nas siglas dos libertadores)!
O PAICV, agora tem a obrigação moral, institucional e de boa cooperação, de dizer à sociedade civil guineense, quem são os membros desse “Clube de tchutchiduris”, caso contrário, ficaram com rótulo de um partido irresponsável e leviano que faz acusações simplistas e generalistas, sem apontar responsáveis.
O PAICV, antes de emitir comunicados para fora de portas, principalmente para a Guiné-Bissau, devia fazer um exercício de ponderação, revendo a nossa história comum desde 1974, com feridas ainda por sarar, isso se lhes interessa, como é óbvio, manter este clima de estreitamento dos laços, agora promovido pelos governos dos dois países.
A Guiné-Bissau encontrará o seu caminho entre as quedas e o levante e precisará apenas e tão só de uma boa relação de cooperação com os irmãos de Cabo-Verde e da reactivação da solidariedade institucional entre os dois estados, assente no respeito mútuo das respectivas soberanias.
O saudosismo partidário do tempo da luta de libertação já faz parte do passado, da história que nos orgulha, que no entanto foi gravemente ferido com as posições tomadas após o golpe de estado de 1980. Se quiserem resolver esse problemas, entre os libertadores, que poupem os dois estados e os dois povos. Já houve tempo em que o partido libertador se confundia com o estados guineense e caboverdeano. Hoje, os tempos são outros!
A Guiné-Bissau, embora ter tomado caminhos errados nessas quatro décadas da nossa independência, ainda é e espero que continue a ser um estado soberano, com os órgãos de soberania que gozam da sua independência de acção, regulados apenas pela nossa Carta Magna.
Ultrapassado a fúria da europeização dos dez grãozinhos de terra, também consequência da crise económica que avassala a Europa e cada vez menos solidariedade entre os estados membros do clube europeu, se um dia os libertadores desejarem recuperar os seus passados comuns e fundirem os C’s a mais nas respectivas siglas, seria desejável que poupassem os respetivos estados que resolveram seguir caminhos diferentes na conquista das suas próprias soberanias. O projecto idealizado por Amilcar Cabral morreu em 1980 e hoje já faz parte da história.
Voltando ao animado e perigoso jogo entre o governo e a justiça guineense, no meio da parca informação consistente que tem circulado, importa questionar o seguinte:
- Será que o Ministério Público não é um órgão de defesa do estado, que perante suspeitas de atividades que lesam o estado deve agir em conformidade com a lei?
- Deve a sociedade civil condenar os magistrados do Ministério Público por zelarem na denúncia e perseguição de pressupostos prevaricadores?
- Será que o Ministério Público age neste momento, movido por interesses que não são a defesa dos interesses do estado? Que interesses defende o Ministério Público, que poderão vir prejudicar gravemente o estado no futuro?
- Que papel assumiu o Ministério da Justiça em todo esse processo? Silêncio total (mukur-mukur oredja di purco)! A altura é mais apropriada para o Ministério da Justiça fazer formações sobre o direito das crianças ou intervir na defesa dos interesses do estado, claramente lesados pelos adultos corruptos ou corrompidos?! O governo ou o Ministério Público, alguém está em falha para com os seus deveres. A Ministra da Justiça também tem a obrigação de assumir perante o povo, de que lado do campo está a jogar. Ou assume que a justiça é frágil e manipulada por interesses obscuros e trata de implementar urgentemente uma profunda reforma da justiça, atempadamente anunciada ao povo, ou assume que faz parte do clube dos governantes corruptos e toma a decisão em conformidade, conforme quiser ou não “comer farelos”…
- Um Primeiro-Ministro que vê o seu governo avassalado por acusações de crimes de corrupção a vários dos seus ministros, deve reagir questionando o funcionamento e a independência da justiça, ou tentar apurar internamente as verdadeiras responsabilidades dos seus homens de confiança e renovar ou não a sua confiança nesses elementos?!
- É de esperar de um Primeiro-Ministro uma reacção tão só de protecção do seu governo, como um pai protege os filhos, sejam eles culpados ou não, sem no entanto se atravessar em dizer claramente ao povo (o principal interessado), se ainda renova ou não a sua confiança nesses elementos acusados? Si bu djunta ku purcu, forrel ku bu ta cumé.
- Nesse jogo muito disputado, qual das partes precisa mais de renovar o seu plantel, com contratações de melhores jogadores? O Ministério-Público ou o Governo? O tempo nos dirá!
À Sociedade civil guineense peço para que se mantenha isenta nesse jogo político-judicial, até o esclarecimento mais aprofundado das posições, assumindo o papel de expectadora, para depois poder julgar no momento certo, de acordo com os poderes que a democracia lhe confere. Evitemos os excessos e não permitamos a interferência externa nos problemas estritamente nossos.
Jorge Herbert
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