ERNESTO DABÓ
Podia ser o Mohamed Dabó, mas para que pudesse ir à escola teve que mudar de nome. Hoje éErnesto Dabó, convidado do Roteiro Literário, o músico, escritor, jurista, activista cultural e político que deu a conhecer ao Hoje Macau a vida que fez com que faça o que faz.
As histórias têm um início… a cultura na sua vida, como aconteceu?
Começou em casa. Os meus pais motivaram-me desde muito cedo para o estudo e então começamos todos em casa a relacionarmo-nos com os livros, com outras esferas da cultura e aí por diante. No meu caso particular, desde muito cedo senti que tinha um gosto especial por estas áreas e em determinado momento já estava a fazer música e depois a escrever e assim por diante.
Uma educação motivada para o conhecimento numa família Muçulmana que o pôs a estudar na Missão Católica. Como é que isto aconteceu?
Nasci em Bolama, e o meu pai era um indivíduo que tinha a sua visão da vida, tinhas os seus conceitos e o regime colonial não oferecia muitas escolhas, nomeadamente as estruturas escolares. As mais abertas eram as chamadas missões católicas que davam instrução primária. Mas para ser matriculado nessas escolas, para ser aluno tínhamos que praticar a religião cristã: estudar a catequese, ir às missas e inclusivamente o meu nome Ernesto é uma imposição colonial. Naquele tempo, para ser matriculado tínhamos que ter um nome cristão. O que também aconteceu no meu caso. Quando me fui matricular mostrámos o meu nome e disseram que não era possível, quando chegámos a casa o meu pai pegou no nome Ernesto e disse “o importante é que ele vá para a escola”. Houve ainda a particularidade do meu pai nunca ter pressionado ninguém para a sua fé. Admitiu que nós praticássemos a religião que entendêssemos. E o meu caso foi esse, conheci a religião cristã, evolui na mesma até que cheguei a uma altura em que disse “agora não pratico nada”. Agora penso que há qualquer coisa que gere este universo e respeito muito isso, mas o essencial é praticar tudo aquilo que é a recomendação positiva de qualquer religião. Faço questão de fazer da vida um acto de partilha. Enquanto conseguir isso estou seguro que estou bem .
Também é conhecido pela sua actividade politicamente interventiva, e em plena época colonial, dirigida à independência. Quando a determinada altura foi para Portugal, já tinha esta consciência? Como é que esta problemática ganhou forma?
Quando fui para Portugal ainda não tinha esta consciência, era ainda muito novo, com 13 ou 14 anos. Ela nasce também com a minha família. Na altura estava em Portugal com um irmão meu e ele já percebia o que se estava a passar no país. O meu pai também mais uma vez, foi alguém que estava ligado em Bolama, a essa corrente de pessoas que já estavam a perceber que a libertação nacional era um projecto que tinha que ir para a frente. Associando estas questões comecei a observar o que se passava, a aprender e a ler, e como gostava muito de ler fui aprofundando as coisas. Depois também tive a sorte de ter bons amigos, com quem cresci e que alguns, da classe média portuguesa, eram também gente com uma cultura muito diferente e que me deram muitas dicas no sentido de perceber o que se passava. E depois também era fácil entender que eu era diferente. Sou negro, estou numa sociedade portuguesa, branca, que na altura, por sinal, não era assim tão culta e desenvolvida e juntando o meu carácter e a minha curiosidade em saber o que se estava a passar e porque fui forjando a minha consciência política até ter percebido, “ah, afinal é isto e não tem nada de mal, afinal a prova está aqui e agora compreendemos que afinal estávamos todos no mesmo barco”. Era o fascismo a fazer estragos em Portugal e era o colonialismo a fazer estragos na Guiné e eram combatentes pela democracia em Portugal e combatentes lá também. Gostei imenso de ter vivido este período.
Ainda antes do 25 de Abril, e já com essa consciência política, ingressou no exército, na Armada Portuguesa. Como foi para si estar na “trincheira do inimigo”?
Sim, foi das coisas mais giras que me aconteceram na vida. Fui recrutado, porque na altura era mesmo assim, mas ( vou-lhe revelar aqui algo que nunca revelei) eu já tinha relações com as estruturas que funcionavam da luta pela libertação. E quando entro para a Marinha, vou, e acontece uma coisa milagrosa – ainda há dias tivemos um almoço em Lisboa para celebrar os 45 anos desse encontro – um capelão da unidade resolveu criar um conjunto musical e como vinha com alguma experiência da Escola Agrícola onde tinha estado, convidaram-me para participar no projecto e participei. Aquilo ganha dimensão e o capelão propôs aos comandos da altura da Marinha para que esse conjunto, chamado “Os Náuticos”, começasse a animar no Ultramar, que fizesse uma digressão . Estava no conjunto como vocalista do grupo e lá no fundo disse “ isto vem mesmo a calhar, vou dar tudo por isto e vou fazer uma tropa de música e assim ninguém me põe a fazer guerra contra mim mesmo. E isso foi no fundo o que fiz, mas essa passagem pela vida militar foi ainda uma escola de vida muito importante para mim.
Em que sentido?
No sentido, por exemplo, humano! Estamos num período de guerra e as amizades que ganhei nesse período ainda hoje são as maiores amizades que tenho. Depois do ponto de vista da minha consciencialização, essa digressão em que estivemos na Guiné, Cabo Verde, Angola e Moçambique, foi aí que, finalmente, conclui esse processo “de tomada de consciência”. No contacto com a realidade. Estava fora da Guiné deste garoto e foi um choque brutal, extramamente interessante. Os meus amigos e os meus colegas da tropa que conhecia bem e que tínhamos confidências, também estavam contra a guerra mas não podiam fazer nada. E chego à Guiné e a guerra está a fazer mal às pessoas que não a querem . Foi um drama humano que não sei explicar. Vivi isto de forma dramática, fechava-me no quarto a pensar “mas, caramba, pessoas amigas aqui, ninguém tem nada contra mim enquanto pessoa e depois vês pessoas que o que têm para fazer é matar”. É das coisas mais absurdas que eu já vi na vida e que me marcou profundamente.
Um outro aspecto é que a vida militar permitiu-me amadurecer como homem. Saber que eu devo contar comigo em primeiro lugar. Não tem pai, nem mãe nem irmão, é a tropa. Mas no fundo posso dizer que não me arrependo de nada nessa trajectória porque me valorizou muito. Aliás, em toda a minha vida tenho tido dificuldades e problemas , mas graças a esta escola de vida também tenho sabido saber sair e saber entrar. E tive a sorte de não confundir nada. De separar as águas, por isso é que mantenho as amizades que tenho, que são fraternas.
Em 74 regressa à Guiné, e paralelamente inaugura o mercado musical Guineense com os Djorson e o disco “folclore da Guiné….
Antes de regressar, ainda em Lisboa, com uns amigos em Lisboa criámos esse grupo, ainda na tropa. E gosto de criar, não consigo estar sem criar, e naquela altura disse “temos que ter um disco, Angola tem, Moçambique também, todos têm, nós também vamos ter que ter um disco. Então peguei no projecto, ensaiámos, gravámos e fui ter com o meu mais velho Rui Mingas que já tinha uma carteira de relações, era uma figura respeitada e tinha vários contactos. Ele disse que ia ver o que podia fazer, ligou ao Victor Mamede que foi o produtor do nosso disco e gravámos um single com duas canções e foi o primeiro disco da discografia da Guiné.
Cobiana Djazz, mais que um agrupamento musical, um projecto multifacetado…
Iniciou-se como um agrupamento musical, mas para mim extravasou essa condição, aliás até estou a preparar um ensaio acerca disso que se chamará “ O movimento Cobiana Djazz”. Desencadeou uma série de consequências na nossa vida cultural, quebrou uma série de tabus, o primeiro é que não se cantava em crioulo coisas modernas, uns até diziam que o crioulo não era uma boa língua para cantar e nós começámos a cantar em criolo o que motivou com este projecto a criação de poemas em crioulo e letras para músicas . Os espaços nobres de dança em Bissau alargaram para as periferias, e mais, começou a ser um instrumento de divulgação de várias ideias e influenciou várias coisas da vida da sociedade guineense e pela primeira vez uma cultura urbana estava a ganhar espaço. Passado pouco tempo as canções da Guiné Bissau já estavam a circular pelo mundo fora, transformando-se em mais um veículo da luta que estava a decorrer. Estravazou os limites de uma simples orquestra e tornou-se um movimento cultural.
Da sua relação entre as experiências que foi tendo e o que faz…
Qualquer individuo é um produto cultural, por isso se quiser fazer arte, se quiser produzir cultura, não há outra reserva, a reserva que tem é aquele que temos em nós.
O seu último trabalho escrito “PAIGC: Da Maioria Qualificada à Crise Qualificada” é um um livro político de um homem da política e das artes que (re)olha para o seu país. Como é que o vê, bem como à cultura e à sua importância, nos dias que correm?
As nossas crises têm como fundo a alienação, uma crise cultural. No dia em que a nossa elite política começar a reflectir na cultura nacional e com a realidade nacional, tenho a impressão que vai ser mais humilde e mais responsável. Porque às vezes estão com cargos políticos mas a reflectir como se fossem administradores coloniais, e isso choca.
“Podem tirar o homem da favela mas não podem tirar a favela do homem”, é isto que sente, mas no que respeita a esse pensamento colonial?
É isso! O elemento de dominação mais importante é cultural, faz a pessoa negar-se a si mesma e subjugar-se ao outro, e segui-lo sem saber que tem o seu próprio caminho. E a luta de libertação é um facto de cultura porque rompe com isto e porque permite seguir por ti e para ti.
hojemacau.com.mo/Conosaba/MO
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