Um grupo de moçulmanos autodenominado de Movimento Contestatário à lei da proibição da excisão feminina, volta a exigir o retorno da prática da excisão feminina, alegando a laicidade da República da Guiné-Bissau. A contestação do grupo surgiu quatro anos depois da aprovação de uma lei, pelo Parlamento guineense, que proíbe a excisão feminina no país.
A reportagem do semanário “O Democrata” ouviu a opinião de vários especialistas sobre a questão da excisão feminina, tendo a maioria afirmado ser contra a prática, alegando que prejudica a saúde das mulheres. A prática da mutilação genital feminina está a dividir a comunidade muçulmana guineense devido a forma de interpretação do Alcorão.
Alguns especialsitas na matéria corânica alegam que a prática da excisão feminina não consta do livro sagrado dos muçulmanos e muito menos é uma prática recomendada pelo profeta Mohammad. Para os mesmos especialistas, a excisão feminina é uma prática cultural adoptada pelos antepassados há muitos anos, sobretudo os grupos étnicos que praticam a religião muçulmana, mas defendem que não está recomendada no alcorão e nem é ‘sunna’, isto é, algo praticado pelo profeta ou recomendado por ele.
ALADJE IAIA JALO: A LEI DA PROIBIÇÃO DA MUTILAÇÃO GENITAL NO PAÍS É UMA LEI DISCRIMINATÓRIA
A reportagem do semanário “O Democrata“ ouviu o coordenador do Movimento Contestatário à lei da proibição da excisão feminina na Guiné-Bissau, Aladje Iaia Rachido Jalo, para abordar as razões que motivaram a sua organização a exigir o retorno desta prática considerada como crime no país, desde 2011.
Aladje Iaia Rachido Jalo afirmou à nossa reportagem que a “lei que proíbe a mutilação genital feminina no país é uma lei discriminatória”. Acrescentou ainda que viola claramente a Constituição da República no seu artigo 24, onde está escrito que “todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de raça, sexo, nível social, intelectual ou cultural, crença religiosa ou convicção filosófica”.
Informou que o movimento que coordena tem como objectivo trabalhar para a libertação das mulheres fanatecas que estão presas ilegalmente, porque aquelas senhoras não cometeram nenhum crime. “Essas mulheres não cometeram nenhum crime. Apenas aplicaram simplesmente a tradição nobre do Profeta Mohammad, praticando a circuncisão das suas filhas, cujo acto é uma purificação da mulher”.
Este responsável do movimento assegurou que a sua organização está a trabalhar afincadamente, todos os dias, para que seja revogada a lei da proibição da excisão feminina, que é “uma lei injusta, caracterizada por discriminar os muçulmanos dos não muçulmanos, entre o sexo masculino e feminino dentro do país, coisa que é proibida pela constituição”.
“Na interpretação e no entendimento de mais de 95 por cento dos especialistas em matéria corânica e muçulmanos da Guiné-Bissau, a religião muçulmana autoriza, com base no sagrado Alcorão, e do sunna do Profeta Mohammad, a prática da excisão feminina”, explicou o responsável que, entretanto, avançou neste particular que mesmo no seio dos especialistas em matéria da saúde ao nível mundial, não há unanimidade em como a prática da excisão feminina é prejudicial à saúde de criança ou da mulher.
Na visão do coordenador do movimento contestatário, a lei que proíbe a excisão feminina está a ser praticada de forma selectiva, o que, no seu entender, não devia ser feita desta forma. Insistiu que a referida lei é discriminatória, porque é criada apenas para a comunidade muçulmana.
“Os deputados da nação que aprovaram esta lei tiveram grande cuidado durante as discussões. Invocaram apenas a questão da violação dos direitos humanos, que todos sabemos que é uma questão muito vaga em termos de conhecimento, até porque não são apenas os direitos das mulheres que estão a ser violados mas também os dos homens, porque se elas são excisadas, eles são circuncisados”, notou.
Lembrou ainda que o islão, quando defendia os direitos humanos no ano 1436, a Europa ainda não sabia o que eram os direitos humanos. No entanto, contou que as “pessoas que estão a trabalhar nesta matéria só podem ser chamadas de ignorantes ou estão a trabalhar por dinheiro, enquanto o movimento contestatário não trabalha para ser pago, mas sim em nome da comunidade muçulmana e de valores culturais”.
“SOMOS UM PAÍS DEMOCRÁTICO, MAS NÃO SIGNIFICA QUE DEVEMOS VIOLAR OS DIREITOS DAS PESSOAS”
Fatumata Djau Baldé, presidente da Comité Nacional para Abandono das Práticas Nefastas (CNAPN), afirmou que a Guiné-Bissau é um país Democrático mas não significa que devemos violar os direitos das pessoas. A presidente falava numa entrevista exclusiva ao semanário “O Democrata” sobre a posição do comité face ao novo movimento que exige a revogação da lei que proíbe a mutilação genital feminina no país.
Fatumata Djau Baldé disse ainda que a lei que proíbe a mutilação genital feminina não foi criada neste ano. É uma lei criada desde 2011. E pergunta: “Porque só agora surge um grupo de pessoas que alegam ser nacionais, mas todos são oriundos de Guiné-Conacri, a reivindicar que a prática deve continuar porque esta no Alcorão? Os últimos presos que estiveram a praticar a mutilação genital não eram os primeiros presos depois da entrada em vigor da lei. Porque não surgiu este movimento naquele momento, mas só agora? Isso, no seu entender, deixa um clima de incertezas e de muita suspeição.
Djau Baldé explicou ainda que o líder do movimento para a revogação da lei da mutilação genital feminina afirmou que esta prática deve continuar apenas para as mulheres, porque é uma pequena parte (da sua anatomia) que lhe é retirada, mas não para os homens. E fez questão de deixar esta informação para líder, porque ela acredita que ele não sabe que esta prática não é igual, não se faz de mesma maneira, e que varia de um país para outro e de fanateca para fanateca, e que existem ainda vários tipos de mutilação genital feminina.
“Além de tudo, este líder pertence um grupo de pessoas que praticam a excisão de forma mais dura e dolorosa, que são pessoas da vizinha de Guiné Conacri que estão a alastrar-se para o nosso território”, vincou.
Por outro lado, Fatumata Djau Baldé assegura que as autoridades têm que ter um posicionamento de Estado, porque estamos num Estado de direito, as pessoas não podem continuar a violar os direitos de outras pessoas. Na sua opinião, o Ministério Público não deveria permitir que um cidadão afirmasse publicamente que irá pôr em causa a legislação, e que o comité não iria permitir que um grupo de pessoas ponha em causa todos os ganhos adquiridos em termos de respeito pelos direitos humanos.
Acrescentou que o grupo alega que há uma violação de lei Islâmica, mas esqueceu-se de que a Guiné-Bissau não é um Estado islâmico mas sim laico, onde cada cidadão pode praticar a sua religião, mas também não pode permitir que em nome de religião sejam violados os direitos humanos. Aliás, Djau disse que na maioria dos países islâmicos estas práticas não se verificam e naqueles onde era praticada, já não se verifica.
Fatumata Djau Baldé assegurou que enquanto cidadãs nacionais e mulheres vítimas que vivem dia –a – dia com as consequências dessa prática e que vão acompanhá-las pelo resto dos seus dias, não aceitarão mais esta prática nefasta. Além disso, não podem mais perder os ganhos e o reconhecimento de estarem a viver num país que respeita os direitos humanos e fundamentalmente os direitos das crianças, e que não será um grupo de pessoas que irão tirar-lhes esses ganhos.
Portanto o Comité vai usar todos os mecanismos possíveis, inclusive a Assembleia Nacional Popular e o Ministério Público, para que façam com que estas pessoas sejam responsabilizadas pelos seus actos de violação de uma legislação nacional. Como a questão de direitos humanos ultrapassa as fronteiras, não vamos dizer que este movimento é de cidadão A ou B. Mas sabemos que a maioria dos integrantes deste movimento são cidadãos nacionais originários da Guiné-Conacri.
USTAS ABUBACAR: ESPECIALISTAS MUÇULMANOS E DA SAÚDE PROIBEM EXCISÃO FEMININA
A nossa reportagem contactou uma especialista em matéria corânica para falar sobre a prática da excisão feminina, se se trata de uma recomendação da religião muçulmana, do Sagrado Alcorão ou não, dado que é uma prática aplicada apenas pela comunidade muçulmana, alegando cumprir recomendações mandatadas no Alcorão.
O presidente da Associação dos Imames (padres) da Guiné-Bissau, Professor Aladje Abubacar Djaló, explicou à nossa reportagem que a questão da excisão feminina é uma prática que suscita sérias preocupações a nível da comunidade muçulmana. Por esta razão, decidiu-se realizar uma Conferência Internacional no Egipto em 2006 e que reuniu especialistas em matéria corânica e especialistas de saúde, para analisar o assunto.
O responsável da Associação de Imames Guineenses disse que vai falar apenas das recomendações produzidas pelos “sábios – especialistas”, em matéria corânica e da saúde durante a conferência realizada no Egipto em 2006, onde foram produzidas várias recomendações que proíbem a prática da excisão feminina e não só. A conferência permitiu que os sábios muçulmanos mostrassem que a excisão não é uma prática recomendada no Sagrado Alcorão.
Lembrou que a conferência reuniu diferentes líderes religiosos, médicos, membros da sociedade civil de países da Europa, Asia e África, na qual foram produzidas algumas recomendações, sob as orientações de especialistas em matéria corânica e da saúde.
Referiu que uma das recomendações da conferência do Egipto é que o “próprio ‘Allah – Deus’ adora o ser humano, o que significa que ele mesmo respeita o corpo humano, seja homem, seja mulher, e que em nenhuma circunstância o corpo pode ser violado”.
Recordou ainda que os especialistas em matéria de saúde chegaram à conclusão que a mutilação genital feminina é uma prática que prejudica a mulher física e psicologicamente, pelo que recomendou-se que seja proibida a referida prática.
Notou que os conferencistas alegam que o Alcorão proíbe a violação do corpo de um ser humano. Sustentou que o próprio profeta Mohammad recomendou, numa das suas palavras o seguinte, “não prejudique o seu corpo e muito menos o do seu parceiro”.
O presidente da União Nacional de Imames assegurou que a comunidade muçulmana deve facilitar a integração da lei que proíbe a excisão feminina. Acrescentou ainda que a referida lei foi promulgada no mandato do falecido Presidente da República, Malam Bacai Sanhá.
Esta questão da mutilação genital feminina não é uma questão de reza, zacato e muito menos da reza de ramadão que alguém pode dizer vamos voltar aos versículos do Alcorão. É um problema ligado à saúde das pessoas e se, no Sagrado Alcorão, é proibido violar o corpo de uma pessoa, então, este será o nosso suporte para enfrentarmos quem quer que seja até quando aparecer um especialista da área que desminta que esta prática não prejudica o corpo de uma mulher”, esclareceu.
GENECOLOGISTA: MUITAS MULHERES PERDEM FILHOS POR CAUSA DA EXCISÃO FEMININA
Entretanto, a nossa reportagem contactou a ginecologista do hospital militar principal para falar sobre a consequência da mutilação genital feminina, bem como das experiências vividas junto das mulheres vítimas da excisão.
A médica Hauta Correia Landim explicou que muitas mulheres perdem seus filhos no momento de parto por causa da excisão, porque de acordo com a especialista depois da excisão, a parte que resta no corpo da mulher torna-se pequena e em consequência disso a criança não consegue sair com a facilidade, sem que haja uma intervenção da parteira ou de uma pessoa com a experiência para ajudar no processo.
“Existem três tipos de mutilação genital feminina, a saber: a primeira é quando se corta só a parte que é chamada de ‘Clitóris’. A segunda é cortar a parte de ‘Clitóris e Lábios Menores’ e terceiro e a última forma de mutilação genital é quando se retira o “Clitóris, Lábios Menores e Maiores, “ neste último caso, quando se cicatrizar, fecha-se e é aberta só no casamento, onde a mulher perde muito sangue”, contou a ginecóloga, que no entanto, aproveitou a ocasião para apelar os pais e encarregados de educação para não submeterem as suas filhas à prática da excisão, porque a referida prática prejudica a saúde da mulher.
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