Imigração clandestina
Bissau, 08 Abr 15 (ANG) -Todos os dias há milhares de histórias sobre a
travessia do Mar Mediterrâneo e a tentativa de chegar à Europa.
Histórias que não são histórias: são vidas de pessoas.
Marrocos faz fronteira com o Mar Mediterrâneo e corresponde à última
escala em África antes de se chegar à Europa. Dentro de Marrocos
duas·cidades – Ceuta e Melilla – já são Europa, o que faz com
que·diariamente haja imigrantes a tentarem entrar no seu perímetro.
Ceuta está rodeada pelo mar e por uma grelha de arame farpado. Se antes
esta barreira tinha três metros agora e para dificultar a entrada no
espaço geopolítico da União Europeia, tem seis. A primeira imagem da
grelha é absolutamente brutal: grades por toda a montanha, dividindo uma
vila dos seus habitantes, e patrulhamento militar permanente. Se de um
lado o ambiente faz lembrar as guerras coloniais, com trincheiras
escavadas e soldados de 30 em 30 metros. Do lado espanhol faz pensar
numa guerra futurista. Normalmente a acção marroquina evita que as mãos
europeias se encham de sangue.
Perto de Ceuta fica o bosque de Beliunes, onde até dois meses atras,
acampavam mais de um milhar de indivíduos à espera do momento oportuno
para passar a fronteira. Regra geral estes acampamentos têm comunidades
de origens diferentes e organizam-se em assembleias. São acampamentos
clandestinos ou semi-clandestinos que perduram até que a polícia
marroquina ou a falta de abastecimentos e o alastrar de doenças, os
obrigue a se auto-dissolverem. Nestes acampamentos – entre os mais
famosos, o bosque de Beliunes em Ceuta, El Pilar de Rostrogordo e o
monte Gurugu em Melilla – a situação humana é difícil e perigosa uma vez
que, os clandestinos ficam à mercê de toda a espécie de abusos, não só
da polícia marroquina e espanhola, como da arbitrariedade de
especuladores que se aproveitam para fazer negócio.
Em finais de Outubro de 2014, a situação agudizou-se em Beliunes; o
acampamento estava a braços com uma epidemia de coceira e os militares
marroquinos andavam a varrer o local sob pressão do Governo Espanhol. As
várias comunidades de sub-saharianos reunidas na floresta decidiram
fazer dois assaltos colectivos à fronteira. Cada um deles teve a
participação de 500 pessoas, das quais cerca de cem, em cada assalto,
conseguiram passar. Houve centenas de feridos.
Saltar a rede implica alguma organização: ter escadas de pelo menos 6
metros; estar atento aos polícias e estar disposto a morrer e a ver os
corpos dos outros ficarem para trás –, uma vez que, se a Guarda Civil
electrifica o arame farpado e usa balas de borracha, o
exército marroquino dispara balas e transporta as pessoas capturadas em camiões até ao deserto.
O assalto à rede foi uma nova batalha de uma guerra interminável e
representou uma mudança na fronteira sul da Europa. A profusão de
imagens que circularam no Ocidente acabou por suscitar uma mudança de
atitude por parte do governo marroquino, encorajado pelo apoio
financeiro da União Europeia. Em menos de dois anos atrás, mais de 4 mil
“sub-saharianos” foram expulsos do território marroquino ou detidos em
acampamentos militares perto da fronteira com a Argélia..
Quando um “sem-papel” consegue chegar a Ceuta tem de se apresentar na
esquadra. Aí é registado, cabendo às autoridades locais decidir o que
fazer com ele. A sorte pode variar entre a deportação e a recepção de um
documento provisório, que permite ao indivíduo deslocar-se em
território europeu (sem, no entanto, ter documentos que lhe permitam
assinar um contrato de trabalho). Muitas vezes, à porta das esquadras,
elementos da Guarda Civil impedem aos clandestinos de se apresentarem às
autoridades, entregando-os aos militares marroquinos.
Se conseguiram o documento provisório são “depositados” no CETI – Centro
de Estância Temporária de Imigrantes –, um centro para 450 pessoas que
chega a acolher 3.000. Provêem na sua maioria de países marcados pela
fome, miséria e guerra: Sudão, Costa do Marfim, Nigéria ou Guiné-Bissau
assim como Índia e Paquistão. Nos terrenos em volta do centro, o
ambiente é o de uma torre de Babel onde costumes, culturas e hábitos
coexistem em nichos. No entanto, mesmo em Ceuta ou Melilla, estas
pessoas deparam-se com a hostilidade racista dos árabes do Norte de
África, que não se consideram africanos e que acham que aquela “sua”
terra não é para os africanos. Com a brutalidade da polícia, que não
hesita em rasgar os papéis de um “ refugiados” ou com o desprezo de
comerciantes que se recusam a vender-lhes comida.
Relatos diferentes de uma mesma guerra, estas “micro-geografias” estão todas profundamente interligadas e reflectem dimensões globais que as as relacionam com a vida na Europa.
“Norma, Justiça e Direito” assentam assim na existência de zonas de
excepção em que a vida, como a do imigrante sub-sahariano em Ceuta e
Melilla, é passível de ser morta, sem que tal constitua assassínio.
As migrações de pessoas e a circulação de conhecimentos fazem parte de
um mesmo processo que se faz sentir em ambos os lados do estreito e
obriga cada vez mais a repensar a própria noção de território. Os
enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, situados em território marroquino
formam excepções na linha da fronteira que – caso estes enclaves não
existissem, acompanharia a linha da costa.
Através do financiamento da União Europeia, a administração espanhola
reactiva diariamente o processo de construção de uma outra fortaleza na
forma de zonas de compras (tax free zone) e ocidentais praias
turísticas, símbolos últimos da prosperidade e vigor da Europa ali
representada. As próprias cidades marroquinas incluem enclaves
arquitectónicos europeus (ou europeizados) numa interligação material
que nos leva a pensar que construir realidade apenas pode dar forma ao
que já existe em potência nas mentalidades e nos discursos.
Há toda uma tecnologia do controlo que vive da existência de lugares de
excepção como estes, em que a polícia se militariza e o exército entra
na esfera civil. Corpo, espaço e tecnologia produzem e mantêm as
fronteiras que, em simultâneo, são transgredidas e atravessadas vezes ao
dia através de e-mails, sms, home-videos, televisão e rádio. ANG
Nenhum comentário:
Postar um comentário