Desamparados pelos homens: MULHERES ABANDONAM FETOS E CRIANÇAS SOB PRETEXTO DE POBREZA



Bebe de nove meses abandonado no poço, no bairro de São Paulo

A prática do abandono de fetos na sociedade guineense está a tornar-se recorrente, sobretudo na cidade de Bissau. De acordo com informações apuradas, nos últimos dois meses a Polícia Judiciária, através da Brigada de Menores, registou oito casos de abandono de fetos e de crianças em lugares menos frequentados.
Sobre o assunto, uma equipa de reportagem de “O Democrata” deslocou-se a diferentes bairros da capital onde foram registados actos que indiciam a prática de aborto bem como o abandono de crianças, para apurar as suas verdadeiras causas. A maior parte das opiniões recolhidas no terreno aponta a pobreza como um dos principais pretextos para tais práticas feitas em condições inapropriadas, nomeadamaente o uso de raízes ou folhas de plantas fervidas cujo chá é ingerido e com o propósito de forçar a saída prematura do feto, o que acaba por colocar em perigo a vida das próprias mães.
MULHER INGERIU UM CHÁ DE FOLHAS DE ACÁCIA PARA FORÇAR O ABORTO
Uma jovem aparentando 30 anos de idade, residente no bairro de Brá, nas periferias de Bissau, mãe de duas crianças, provocou um aborto de um feto de quatro meses, através de ingestão de folhas da acácia fervidas e ingeriu o conteúdo para abortar o feto em poucas horas.
“Bebi um chá de folhas de acácia. Eu mesma fervi o chá e passadas algumas horas comecei a sentir dores da barriga. Pouco depois, comecei a perder sangue com grande intensidade. Perdi muito sangue até ao momento em que deitei para fora o feto. Depois de expulsá-lo, atirei-o a uma latrina”, explicou com uma voz trémula e com lágrimas nos olhos.
A jovem mãe justifica a tomada de tal atitude: “fui abandonada pela pessoa que me engravidou. Como solução decidi, na altura, forçar o aborto do feto mesmo sabendo os riscos de vida que corria”. Num tom de arrependimento pela atitude que tomou de tirar vida a um inocente, pediu que a sua identidade não fosse revelada.
“Tenho dois filhos com a mesma pessoa. Ele abandonou-me há muito com duas crianças. Voltou mais tarde e ficamos bem próximos. Quando soube que fiquei grávida novamente, fugiu de mim. Devido às dificuldades financeiras e sentindo-me sozinha, decidi abortar o feto de quatro meses. Sinto-me muito fraca cheia de dores de barriga. Não consigo levantar-me para ir ao banheiro ou cuidar dos meus filhos”, notou.
Entrevistada de “O Democrata” afirma que já não tem moral para participar nas actividades da comunidade. Acrescentou que pensava que a prática de tirar o feto ajudar-lhe-ia a melhorar a sua condição de vida.
SÃO PAULO: MULHER DEU LUZ E DEITOU A CRIANÇA AO POÇO
Outra situação de aborto acompanhada pela reportagem de “O Democrata” aconteceu no Bairro de São Paulo, também nos arredores de Bissau. O jornal não conseguiu encontrar a responsável. Todavia, testemunhas locais abordadas informaram que a presumível protagonista terá mudado de residência para a casa de familiares, mas não precisaram o bairro.
As mesmas fontes assinalaram que a menina, aparentemente de mais de 18 anos de idade, deitou a criança num poço abandonado no mesmo bairro, mas teve o bebé em condições normais, quer dizer dentro da data estimada.
Outra testemunha explicou que a criança fora encontrada no poço por uma mulher que fora catar água depois de ter sido alertada por um terceiro indivíduo.
A mesma testemunha contou que houve uma pequena altercação entre as pessoas que estavam no local onde o menor foi encontrado abandonado. A discussão, segundo notou a testemunha, envolvia um jovem que alegava ter salvado a criança e contra um grupo de mulheres que estava no local quando a criança foi retirada do poço.
Segundo a versão do jovem que retirou a criança do poço, o bebé, de sexo masculino, estava totalmente rodeado de bichos: escorpião, sapos, ferros, garrafas e pedras.
Notou ainda que, depois da chegada dos agentes da esquadra de Bairro Militar contactados para intervir, solicitou que a criança fosse levada para a maternidade do Hospital Nacional “Simão Mendes”, porque necessitava de cuidados médicos adequados. Mas que estes recusaram alegando que o bebé teria de ser levado para o Centro de Saúde do mesmo bairro, porque a viatura em que seguiam não tinha combustível suficiente.
Para evitar que a situação ganhasse contornos negativos na altura, Dabana Tamba explica que teve de abastecer a viatura dos agentes duas vezes (ida e volta) ao Hospital Nacional “Simão Mendes” e à esquadra do bairro.
Diz o jovem que, estranhamente, depois das diligências e dos esforços que fizera para salvar a criança, recebeu ordens da esquadra local que interdita a entrada de pessoas para visitar o bebé no Hospital Nacional “Simão Mendes”, incluindo o próprio.
A reportagem de “O Democrata” soube que neste momento a criança encontra-se no orfanato Bambaram que garantiu que cuidaria do mesmo até aos três meses de idade, altura em que deverá ser entregue às autoridades judiciais, a quem caberá decidir quem realmente vai ficar com a criança.
Informações postas a circular no bairro evidenciam que muitas pessoas têm interesse em adoptar a criança, razão pela qual a luta para impedir que Dabana se aproxime da criança cresce cada vez mais envolvendo as autoridades locais, que supostamente estão a jogar de lado de alguém.
RÉMEDIOS TRADICIONAIS PODEM DANIFICAR OS OVÁRIOS DEFINITIVAMENTE
Perante o fenómeno de aborto clandestino que se regista nos últimos tempos na cidade de Bissau, contactámos um especialista na área da ginecologia para que nos falasse das consequências que o aborto à base de folhas de árvores pode causar à saúde da mulher e não só.
O ginecologista do Hospital Militar Principal, dr. Júlio Nanfantche, explicou que a corretagem, mesmo sob cuidados médicos, é perigosa e muito mais quando é feito em casa de forma clandestina com remédios tradicionais. Acrescentou ainda que a corretagem clandestina com folhas de árvores, por exemplo, a acácia, é muito perigosa. Pode ceifar a vida da paciente, ou danificar-lhe os ovários e em consequência, fica sem possibilidades de ter filhos no futuro.
“Abortar um feto, mesmo sendo feito por especialistas da área, tem o risco de provocar um pequeno trauma ou sindromine aschema. Se o técnico não fizer bem a limpeza da barriga, pode originar infeções. As infeções podem atingir as trompas e os ovários. E quando atingem esses setores, eles podem ficar danificados reduzindo-lhe assim, a possibilidade de ter filhos no futuro”, esclareceu o ginecólogo.
O especialista avançou neste particular que a corretagem com remédios tradicionais é mais grave, porque a pessoa não sabe como tomar o remédio e nem o tipo de dosagem tem o produto e a quantidade a consumir diariamente.
Sublinhou ainda que a corretagem com remédios tradicionais tem consequências muito graves, dado que esse processo pode danificar o endométrial, onde a criança fica deitada dentro de útero durante a gravidez. E, quando asim for, a paciente não terá mais a possibilidade de aguentar nenhuma fecundação.
O especialista aconselhou que a melhor forma de se evitar “essa tragédia“ é o uso de um método de planeamento familiar adequado. Actualmente é algo fácil de encontrar, porque existe em todos os hospitais, centros de saúde e clínicas privadas da cidade bem como nas regiões. Avançou que a melhor forma de se evitar uma gravidez precoce indesejada é o uso dos preservativos que “até são oferecidos nos centros de saúde“, refere.
ABORTAR UMA CRIANÇA TEM A VER COM A FALTA DE SENSIBILIZAÇÃO DOS PAIS NO SEIO FAMILIAR
A nossa reportagem contactou dois especialistas: um psicólogo e um sociólogo, para falarem do trauma e das consequências que a prática pode causar à sociedade, como também do trauma que a própria praticante pode sofrer perante a comunidade.
Para o psicólogo do hospital principal militar “Amizade Sino Guineense”, Blowshande N. Cabi, a prática do aborto e do abandono de crianças tem a ver com a falta de sensibilização dos pais no seio familiar. No entendimento do psicólogo, a matéria ligada a relação sexual é uma matéria “tabu” para muitas famílias.
De acordo com o psicólogo, actualmente nota-se que a via mais procurada pelos pais e pelos encarregados de educação é de persuadir as suas filhas a utilizarem os “diu’s” (dispositivos intrauterinos como anilhas etc.), como método para se evitar qualquer gravidez indesejada. Porém muitos pais não sabem as consequências do uso deste método, porque às vezes as crianças correm o risco de ficar sem o período menstrual durante quatro ou mais meses o que pode levar à varias complicações como: infecções e dificuldades em ter filhos no futuro.
Segundo Blowshande N. Cabi, o aborto ou abandono de fetos e crianças tem ainda outros riscos colaterais como: vazio mental e falta de raciocínio.
“Depois de tomar tais atitudes para ficar mais à vontade e bem protegida na família ou na comunidade onde está inserida, acaba por sentir-se inútil e vítima da sua própria ação. Começa a sentir um vazio mental que a pode levar a não raciocinar bem. E a nossa sociedade não sabe lidar com pessoas que praticam estes actos, sobretudo quando são descobertas“, explica.
SOCIÓLOGO: ACTO DE ABANDONAR FETO OU CRIANÇA É UMA OFENSA A MORAL PÚBLICA
Na opinião do sociólogo, Ivanildo Pinto Nancassa, o acto de abandonar um feto ou uma criança é uma ofensa à moral pública. Defende ainda que do ponto de vista social, todas as regras de comportamento obedecem a certos critérios estabelecidos nas comunidades. Nas da Guiné-Bissau não são permitidas a prática de abandono ou de aborto de um feto com quatro meses ou mais.
Lembra ainda que na sociedade guineense, ter um filho é muito bem visto apenas depois do casamento. Esta realidade, segundo o sociólogo, pode ter conduzido muitas meninas a praticarem o aborto ou a darem à luz e depois abandonarem as crianças.
Uma fonte da Polícia Judiciária contactada pela nossa reportagem explicou que a prática do aborto ou de abandono de crianças é um crime condenável, de acordo com o Código Penal da Guiné-Bissau.
Recordou ainda que um dos artigos do Código Penal considera o acto como o “crime de infanticídio”, pelo que qualquer pessoa apanhada nesta prática é punida de acordo com a lei. A nossa fonte explicou que a PJ através, da Brigada de Menores, confronta-se com a situação, mas faz o trabalho de busca dos actores da prática para entregá-los a justiça.
“Muitas vezes identificamos e detemos os suspeitos de abandono de feto ou de crianças, entregamo-los ao Ministério Público para efeito da legalização da prisão preventiva e organizar o processo para julgamento”, esclareceu.

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